quinta-feira, 21 de maio de 2009

REGULAMENTO DISCIPLINAR E SUAS INCONSTITUCIONALIDADES

Paulo Tadeu Rodrigues Rosa
1. IntroduçãoO art. 144 da Constituição Federal disciplina que,"A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos".Com base no dispositivo mencionado, percebe-se que a segurança pública é uma função essencial do Estado, o qual deve zelar pela integridade física dos seus cidadãos, buscando evitar a ocorrência das infrações penais, permitindo que a sociedade possa realizar suas diversas atividades junto aos vários setores da economina. Devido a importância desta função, o Estado não pode privativar a segurança, ao contrário de outros setores que são transferidos para a iniciativa privada, e nem mesmo colocá-la em um segundo plano sem os investimentos necessários para o combate a criminalidade.Em atendimento ao Texto Constitucional, a segurança pública é exercida pelos seguintes órgãos : polícia federal; polícia rodoviária federal; polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares e corpos de bombeiros militares, sendo que cada um deles possuem suas funções gerais deliminatadas na Constituição Federal, e as demais atividades previstas em leis infra-constitucionais.Dentre os órgãos mencionados pelo art. 144 da Constituição Federal apenas dois deles possuem estética militar, os corpos de bombeiros e a polícia militar, com graduações e postos semelhantes ao Exército.No entender do Prof. Bismael B. Morais, "prepara-se uma polícia como se fosse para a guerra, para o combate ao crime; não se faz a preparação do homem para prevenir, para evitar a ocorrência do crime", in Guimarães, Pedro Wilson. Atividade Policial e Direitos Humanos, htpp://www.ujgoias.com.br, p.01. Esse posicioamento não condiz com a atual realidade das polícias militares.A Polícia Militar ao contrário do afirmado por Pedro Wilson Guimaraes não está voltada para o desenvolvimento de atividades de segurança nacional, uma vez que esta por força do art. 142 "caput" é prerrogativa das Forças Armadas. Somente em caso extremos é que os integrantes das Forças Auxiliares ficarão a disposição do Exército Nacional, art. 144, parágrafo 6.o da Constituição Federal.Nesse sentido, a Polícia Militar tem buscado o aprimoramento de seus diversos órgãos e de seus integrantes para o desenvolvimento da atividade de segurança pública, onde é responsável pelo policiamento ostensivo e preventivo e pela preservação da ordem pública.Na busca da melhoria do material humano, com a introdução de novas disciplinas nos cursos de formação de oficiais e formação de praças, muitas Corporações deixaram os regulamentos disciplinares fora das reformas, em desatendimento ao disposto na Constituição Federal.Os regulamentos disciplinares foram recepcionados pelo vigente Texto Constitucional, mas algumas reflexões se fazem necessárias a respeito da matéria, para uma perfeita adequação das normas castrenses ao Estado democrático de direito.2. Regulamento DisciplinarOs policiais militares e bombeiros militares no exercício de suas atividades constitucionais ficam sujeitos a uma responsabilidade criminal, administrativa e civil pelos danos que venham causar à Administração Pública, civil ou militar, e a integridade física e patrimonial dos administrados.Na esfera administrativa, os integrantes das Forças Auxiliares ao contrário do funcionalismo civil, que é regido pelo Estatuto dos Funcionários, ficam sujeitos ao que se denomina de Regulamento Disciplinar.É bem verdade que os regulamentos disciplinarres das polícias militares seguem o modelo do regulamento disciplinar do Exército, haja vista que estas possuem uma estética militar, mas cada um traz as particulares das corporações policiais.Ao desrespeitar uma disposição prevista no regulamento disciplinar, o policial militar comete o que se denomina de transgressão disciplinar militar, que para efeitos de estudo pode ser comparada a uma contravenção, uma vez que encontra-se em posição inferior ao crime militar. No regulamento disciplinar da Marinha, a falta administrativa é denominada de contravenção.A transgressão disciplinar militar na lição de Paulo Tadeu Rodrigues Rosa pode ser entendida como sendo, "toda ação ou omissão contrária ao dever militar, e como tal classificada nos termos do presente regulamento. Distingue-se do crime militar que é ofensa mais grave a esse mesmo dever, segundo o preceituado na legislação penal militar. São consideradas ainda, também, transgressões disciplinares, as ações ou omissões não especificadas no presente artigo e não qualificadas como crimes nas leis penais militares, contra os Símbolos Nacionais, contra a honra e o pudonor individual militar; contra o decoro da classe, contra os preceitos sociais e as normas da moral; contra os princípios de subordinação, regras e ordens de serviços, estabelecidas nas leis ou regulamentos, ou prescritas por autoridade competente", in Princípio da Legalidade na Transgressão Disciplinar Militar, htpp:// www. ujgoias.com.br, p.01-2.Para a Professora Ana Clara Victor da Paixão, "definir quais seriam tais ações ou omissões é tarefa que só poderia ser desempenhada pelos próprios detentores de tal atributo, que, no caso, são os policiais militares, como um todo, e não a pessoa do administrador militar ou comandante. O conceito de honra, pudonor e decoro é abstrato, relativo e pessoal : o que um indivíduo considera desonroso ou indecoroso, pode não o ser para os demais. Assim, verifica-se que a autoridade militar não tem sequer titularidade para preencher o tipo disciplinar contido na norma", in Norma Disciplinar Genérica, htpp:// www. ujgoias.com.br, p.2.Mas será que as normas contidas nos regulamentos disciplinares das Polícias Militares dos Estados Federados foram recepcionadas pelo novos Texto Constitucional e encontram-se em consonância com o disposto nos preceitos que tratam dos direitos e garantias fundamentais do cidadão ?3. Normas disciplinares e suas origensAs Polícias Militares possuem suas raízes no decreto expedido pelo então regente Padre Feijó. A esse respeito, José Nogueira Sampaio observa que, "A Lei de 10 de outubro de 1831 que assim se formou, estendo às províncias a instituição dos guardas permanentes, significa o monumento básico das polícias militares estaduais", in Fundação da Polícia Militar do Estado de São Paulo, 2.a ed. São Paulo, 1981.O Estado de São Paulo para dar atendimento ao decreto do Padre Feijó, por ato do Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar criou em 15 de dezembro de 1831 seu Corpo Permanente de Guardas, com 100 homens na arma de infantaria e 30 homens na arma de cavalaria. A Força Policial criada nesse período passou a ter toda uma organização militar baseada na estrutura do Exército Nacional, com graduações e postos, e responsabilidades decorrentes das funções que deveriam ser desenvolvidas.A Polícia no Brasil seguiu as tradições que recebeu de Portugal, estando assentada em uma estética militar diversa da organização da polícia civil, que tem por função exercer à atividade de polícia judiciária, buscando encontrar a autoria e materialidade do ilícito penal.Ao contrário dos policiais civis, tendo em vista a particularidade das funções desenvolvidas, os policiais militares ao praticarem uma falta administrativa, transgressão disciplinar, podem ter seu "jus libertatis" cerceado por um período de até 30 dias, cumprindo a prisão em regime fechado em xadrez existente nos quartéis. A transgressão disciplinar é classificada quanto a sua natureza que vai de leve a grave, o que determina a dosomentria da sanção administrativa.Deve-se observar que atualmente, pelos menos no Estado de São Paulo, os policiais militares em regra não ficam presos no xadrez, mas recolhidos ao quartel sem poderem deixar à Organização Policial Militar (OPM), sob pena de praticarem crime militar.4. Regulamentos e ConstituiçãoAntes do advento da Constituição Federal de 1988, a maioria dos regulamentos disciplinares foram editados por meio de decreto expedido pelo chefe do Poder Executivo, Federal, Estadual, ou Interventores nomeados pelo Presidente da República.No Estado de São Paulo, o regulamento disciplinar data de 09 de novembro de 1943, Decreto n.o 13.657, que foi expedido pelo interventor Fernando Costa, nomeado pelo então Presidente da República Getúlio Vargas. O regulamento disciplinar da Aeronáutica, Decreto n.o 76.322 , data de 22 de setembro de 1975.Com o advento do Texto Constitucional de 1988, pode-se afirmar que surgiu um novo Estado, com norma diversas das pré-existentes. O respeito aos direitos humanos e a dignidade da pessoa humana passaram a ser princípios constitucionais da República Federativa do Brasil.É importante se observar que em decorrência do princípio da recepção, os regulamentos disciplinares aprovados por meio de decreto foram recebidos pela nova ordem constitucional, como ocorreu com o Código Penal, Código de Processo Penal, Código Penal Militar, Código de Processo Penal Militar, e outros diplomas legais.O fato destes diplomas legais terem sido recepcionados não significa que possam sofrer modificações que estejam em desacordo com o disciplinado no Texto Constitucional.Ao tratar dos crimes militares e das transgressões disciplinares, a Constituição Federal disciplinou que, "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei", art. 5.o, inciso LXI. (grifo nosso).Com base no dispositivo constitucional, percebe-se claramente que os regulamentos disciplinares somente podem ser modificados por meio de Lei, no seu aspecto técnico, ou seja, por meio de norma elaborada pelo Poder Legislativo.Negar esta interpretação seria o mesmo que negar a existência do Estado democrático de direito, ou retirar do cidadão o direito ao voto, ou o direito de ir, vir e permanecer.Esse entendimento fica evidente quando se analisa as modificações que ocorreram na Lei penal. O Código Penal foi posto em vigência por meio de um Decreto-Lei, que não é Lei no sentido técnico da palavra, mas que foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Mas, qualquer modificação a este diploma legal somente pode ser feita por meio de Lei Federal, e não por decreto, medida provisória, lei delegada ou qualquer outro instrumento.O mesmo se aplica ao Código Penal Militar, Código de Processo Penal Militar, que foram posto em vigência por meio de decreto-lei, mas como foram recepcionados pela Carta de 1988, somente podem ser modificados por meio de Lei Federal.A esse respeito não existe nenhuma divergência doutrinária e jurisprudencial, e portanto como se explica os equívocos que vem ocorrendo na área dos diplomas disciplinares das polícias militares ?Pode-se afirmar com fundamento no art. 5.o, LXI da Constituição Federal que o novo Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de Goiás, Decreto Estadual n.o 4.717/96, é inconstitucional, e portanto deve ser afastado por meio de decisão do Poder Judiciário mediante provocação de pessoa interessada. O mesmo se aplica às alterações introduzidas no Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo, após 05 de outubro de 1988. Na verdade, todos os regulamentos disciplinares das polícias militares dos Estados Federados que sofreram modificações levadas a efeito por meio de decreto, expedido pelo chefe do Executivo, após a vigência da Constituição Federal de 1988 são norma inconstitucionais.Nesse sentido, encontramos os ensinamentos do Professor Márcio Luís Chila Freyesleben que ao comentar as modificações ocorridas no Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais observa que, "À guisa de especulações, o Decreto n.o 88.545/83, RDM, sofreu alterações de alguns de seus dispositivos, provocadas pelo Decreto n.o 1011, de 22 de dezembro de 1993. Com efeito, após a CF/88 o RDM passou a ter força e natureza de lei ordinária, não sendo admissível que uma lei venha a ser modificada por um decreto. É inconstitucional. in A prisão provisória no CPPM, Belo Horinzonte : Del Rey, 1997, p. 202.Com o mesmo entendimento, encontramos a Profa. Ana Clara Victor da Paixão segundo qual, "Assim, se há real necessidade e interesse por parte das autoridades administrativas militares em aplicar as penas de detenção e prisão disciplinar - que a autora, diga-se de passagem, considera absurdas - impõe-se providenciar que sejam as mesmas instituídas através de lei, dada a indiscutível inconstitucionalidade de todas as medidas restritivas de liberdade pessoal previstas no Decreto n.o 4.717/96", in Regulamento Disciplinar e Reserva Legal, htpp:// www. ujgoias.com.br, p.3.Portanto, com fundamento no disposto no art. 5.o, inciso LXI, pode-se afirmar que os novos regulamentos editados por meio de decretos estaduais expedidos pelos chefes do Poder Executivo, e os regulamentos que foram alterados por meio de decretos, violam flagrantemente o disposto na Constituição Federal, sendo portanto normas inconstitucionais que devem ser retiradas do ordenamento jurídico na forma disciplinada para esse procedimento.Os policiais militares e bombeiros militares assim como os demais cidadãos possuem direitos e garantias que foram assegurados pelo constituinte de 1988, que devem ser observados e respeitados em atendimento aos preceitos constitucionais e a própria existência do Estado democrático de direito.É importante se observar, que não se busca negar à autoridade militar os princípios fundamentais das organizações militares, hierarquia e disciplina, mas o que se pretende é um perfeito enquadramento da legislação castrense ao disposto no Texto Constitucional.A Constituição é a norma fundamental de qualquer ordenamento jurídico, e para que um país possa se fortalecer na democracia é preciso que esta seja observada e respeitada, na busca do aprimoramento da ordem interna e das próprias instituições.

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